Propriedade e Impostos


Alguns esclarecimentos conceituais se fazem necessários em virtude de um post mencionando impostos que escrevi recentemente. Todos já nos deparamos com uma espécie de libertarianismo vulgar, digamos assim, praticado ferozmente na internet por jovens cuja formação filosófica não parece ultrapassar muito a leitura auto-didata de pensadores como H. H. Hoppe e similares. Esses jovens não concluem que imposto é roubo após discutir civilizadamente com proponentes de teorias rivais. Eles partem do princípio de que imposto é roubo e acusam o oponente de degeneração moral, valendo-se de agressões verbais e deboches imagéticos. Vejamos então os conceitos.

Primeiramente, temos que distinguir a propriedade da posse. Posse é um conceito descritivo. Não comporta qualquer normatividade. É a mera detenção física ou controle de um corpo. Propriedade, por sua vez, é um conceito normativo, e não descritivo. Significa um direito à posse ou ao controle, com exclusão de outros. Se um indivíduo é proprietário de um objeto cujo uso é pretendido por outro, o segundo precisa da autorização do primeiro para tal uso. Já o não proprietário não pode impedir o uso do proprietário de seu objeto, a menos que este último esteja fazendo uso de seu objeto de forma a violar algum outro direito equivalente ou superior.

Nota-se que o conceito de propriedade não é nenhuma trivialidade. Por que um indivíduo teria propriedade sobre um corpo, ainda que fosse o seu próprio? Direitos não são realidades observáveis. São alegações contrafatuais. Seu sentido e seu fundamento não são evidentes. Quando estendemos nossos direitos sobre corpos diferentes dos nossos, o desafio filosófico fica ainda maior. Por que eu poderia excluir outros do uso de objetos que são tão disponíveis a eles quanto a mim? Certamente, essa não é uma questão para ser estudada por um único viés, dando-se o assunto por encerrado, um vício comum no auto-didata.

E o imposto? O imposto é o recolhimento, por parte de uma autoridade, de um bem que está em posse de um indivíduo, mas não é propriedade dele, mas sim da coletividade. Assim, a autoridade pode fazer uma ameaça de uso da força caso o indivíduo persista na posse do que não é seu por direito. Temos aqui outro conceito normativo. O imposto pressupõe a legitimidade de uma autoridade e o próprio conceito de propriedade, agora, pensado para todos, em nome de quem fala a autoridade, com exclusão de cada um em particular.

Conclui-se que 1) se não existe tal autoridade; 2) se não existe propriedade coletiva; 3) se existe somente propriedade individual; 4) se o indivíduo cobrado pela suposta autoridade é o legítimo proprietário do bem, então sempre que alguém se colocar como uma autoridade, pretendendo, por ameaças, fazer passar a posse desse indivíduo para a coletiva, ele estará roubando uma propriedade privada.

Por outro lado, 1) se existe autoridade legítima para falar em nome da sociedade; 2) se existe também propriedade coletiva; 3) se o bem em posse de um indivíduo é de propriedade coletiva, então, sempre que o indivíduo pretender continuar de posse desse bem, ele estará roubando a sociedade. Mas como seria possível que o indivíduo que gerou o valor para um objeto fosse o ladrão do bem que ele não tomou de outrem, mas apenas se recusa a entregar para o uso coletivo?

Classicamente, teorias que reconhecem a propriedade privada e o imposto tratam o último como um custo de manutenção da sociedade sem a qual não haveria bem algum para ser propriedade privada. Se eu compro um carro, eu pago por ele aos indivíduos envolvidos em sua produção e comércio. Mas um carro só existe, porque existe toda uma sociedade. Se a sociedade desaparece, segue o argumento, o que nos resta é uma luta diária pela sobrevivência, com paus e pedras. Daí que, se a ordem social depender da figura de uma autoridade administrando a justiça e protegendo-a de ataques externos, essa figura pode e deve cobrar os custos disso. Aquele que se recusa a pagar os custos passa a ser o chamado “carona”: ele se aproveita do pagamento feito pelos outros e os onera mais por não fazer sua parte.

Mas a sociedade precisa de uma organização que a administre de forma centralizada, ou ela pode funcionar com cada um fazendo seus próprios arranjos, coletivamente ou não, para administrar a justiça e proteger direitos? Essa é uma boa discussão, que não deveria ser reduzida a trocas de insultos infantis. Só um néscio, afinal, consideraria evidente a possibilidade da administração privada da justiça e, portanto, que imposto é roubo.

Publicado por

andreafaggion

Professora de filosofia.

8 comentários em “Propriedade e Impostos”

  1. Desde o início de minha adesão à princípios libertários eu fui cético quanto a legitimidade do direito à propriedade privada. Sempre me pareceu muito frágil a argumentação em torno de “misturar o seu trabalho com o terreno” e por que isso deveria significar alguma coisa. Então eu compartilho com todas suas críticas quanto a irracional aceitação de muitos libertários quanto à existência desse direito.

    Em seu texto, no entanto, apesar da senhora expressar semelhante ceticismo quanto a existência do direito da propriedade privada e à sua suposta consequência lógica de que “imposto é roubo”, eu pergunto por que não demonstra qualquer desconfiança quanto ao peculiar conceito de “propriedade coletiva”.

    Da mesma forma que o direito à propriedade privada requer uma argumentação sólida para embasar a afirmação quanto à sua existência, o conceito de propriedade coletiva também. Não é tautológica a legitimidade do Estado brasileiro como a autoridade soberana de mais de oito milhões de quilômetros quadrados e tampouco que as duzentas milhões de pessoas que habitam esse território, apressadamente aglutinados sob o nome de “sociedade”, o reconheçam como o seu representente.

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      1. Isso ficou evidente no seu artigo.

        Porém, a propriedade privada como único direito possível – com a finalidade de resolver conflito de violência física entre indivíduos – já foi provada. Não há mais discussão nesse ponto. A tal “propriedade coletiva” só é possível existir se, e somente se, existir um contrato voluntário entre as partes. Ainda, tal contrato precisa estabelecer com clareza em quais circunstâncias cada parte tem o direito de uso exclusivo, afinal, é para isso que a propriedade privada serve: para evitar o conflito físico do uso simultâneo. Sem essa especificação clara o contrato seria inútil ou, eu diria, até inválido. Conflitos iriam acontecer do mesmo jeito.

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  2. Na base do “só existe”, só existe, a princípio, posse, como a definiste. Para haver propriedade, é necessário que haja um reconhecimento, uma associação de interesses que pode incluir o poder da associação de cobrar (com violência, inclusive) tributos.

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  3. Uma exímia crítica se me permite, minha senhora. Cumprimentos de Portugal e a continuação de um excelente trabalho.

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  4. Gostei bastante do texto. Gostaria de fazer uma pergunta.
    Com a legitimação do imposto seguindo o pensamento do artigo, qual seria o limite do imposto para que ele passasse a ser não mais um custo, mas um abuso? Imagino eu que seria sua utilização em fins ilegítimos, por exemplo, fins para o qual o Estado não deveria atuar (simplista, para não citar corrupção, dentre outros). Isso levaria a uma outra discussão que é o papel do Estado, não precisa entrar no mérito. Você concorda com minha tese ou possui outro pensamento?

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