Sobre a liberdade e a pobreza das Srtas. Price

No romance Mansfield Park, de Jane Austen, Fanny Price é uma jovem nascida em uma família pobre de muitos filhos. Mais do que com a carência de bens materiais, seu espírito profundo e delicado teria sofrido sobremaneira com a rudeza do meio em que nasceu, caso não tivesse sido generosamente resgatada dele pela família de uma tia, casada com um nobre.

Estando em tão tenra idade quando a transferência de lar se passou, sendo aquela sociedade tão profundamente desinteressada quanto à opinião de mocinhas sobre seu próprio destino, não se pode dizer que a Srta. Price tenha escolhido a troca. Viver de favor, da caridade alheia foi, simplesmente, algo que lhe aconteceu. Eis aí uma pessoa que nada possuía neste mundo além do próprio corpo. Assim sendo, ela cresceu diuturnamente lembrada de que, se ela ocupava um espaço sobre a terra, se usava um objeto qualquer, isso era por concessão da boa vontade alheia; nada a que ela fosse realmente intitulada.

A Srta. Price era livre? Vejamos. Ninguém encarcerava a Srta. Price em Mansfield Park. Não havia vigias, grades ou correntes. E quanto à coerção? Ora, coerção é diferente de restrição física aos movimentos do corpo. Uma pessoa é coagida quando outra pessoa a ameaça com consequências desagradáveis para uma dada escolha, tornando menos elegível uma das alternativas até então disponíveis. Naturalmente, é preciso acreditar que a ameaça tem como ser executada e que, caso seja executada, sofreríamos mais do que sofreríamos em caso de obediência àquele que ameaça. Assim, eu fico sob o controle da vontade do outro: ou o obedeço ou ele causa um dano ainda maior à minha vida. Mas não me parece ser essa a situação das Srtas. Price mundo afora.

Suponhamos que a Srta. Price não tivesse desenvolvido uma vontade tão submissa, tão disposta a se colocar em segundo plano diante de qualquer capricho dos donos da casa onde ela cresceu. Caso a Srta. Price se rebelasse, muito provavelmente, ela não seria açoitada ou algo que o valha. Ela “apenas” perderia a boa vontade dos tios. Em outras palavras, não se trata do que a família dos tios faria contra a Srta. Price, mas do que eles deixariam de fazer. Ora, parece muito exótico considerarmos que uma pessoa coage a outra por prometer não mais interferir na vida dessa outra, caso ela se comporte do modo indesejado: “se você não vier aqui hoje, não falo mais com você”.

É verdade que, aqui, também há a ameaça de uma consequência supostamente desagradável (“não falar mais com você”), tornando uma das alternativas menos elegíveis (“não vir aqui hoje”). Mas isso só nos mostra que algo ainda precisa ser calibrado na análise do conceito de “coerção”, não? Para que a ameaça conte como coercitiva, aparentemente, a consequência negativa não pode ser uma não interferência na vida do outro. Do contrário, estaríamos deixando de reconhecer qualquer diferença relevante ao conceito de “coerção” entre um dano positivamente causado e um benefício voluntário negado. O ônus dessa assimilação seria termos que aceitar que o padeiro, que se nega a entregar o pão, caso o cliente não entregue seu dinheiro (“se você não entregar seu dinheiro, eu não entrego meu pão”) estaria agindo de forma tão coercitiva quanto o ladrão que ordena que o padeiro passe o dinheiro do caixa para não morrer (“se você não entregar seu dinheiro, eu te mato”).

Mas, se aceitamos que há uma diferença entre as práticas do ladrão e do padeiro, diferença esta que é essencial ao conceito de “coerção”, temos que reconhecer que o mal de que a Srta. Price padece não é falta de liberdade. Agora, não nos enganemos, muito se ganha quando sabemos exatamente do que estamos nos queixando. Essa clareza nos leva a entender melhor em que termos devemos colocar o problema e, consequentemente, como pensar em remediá-lo, ainda que, como diria Herbert Hart, possa parecer pedante que lembremos a quem morre de fome que seu problema não é privação de liberdade [1].

No mínimo, com esse tipo de análise, ganhamos duas coisas. De um lado, podemos levar libertários moralmente sensíveis ao reconhecimento de que certos males podem assolar a humanidade, mesmo sem que haja qualquer coerção ou dano à liberdade. Com isso, podemos fazê-los ponderar se não seria até o caso de tolerarmos algumas medidas, de fato, coercitivas em algum grau, se isso fosse necessário e eficiente para amenizarmos esses outros males que nada têm a ver com carência de liberdade. Um mundo 100% livre, supondo que isso seja possível, pode não ser o melhor dos mundos humanamente possíveis, no fim das contas.

Já do outro lado, podemos fazer o defensor da justiça social consciente de que ele não pode tratar da mesma forma aquele que causa danos positivos e aquele que nega benefícios voluntários. Inclusive, neste ponto, é importante termos em vista que, sem a intervenção da família dos tios, ao que tudo indica, a Srta. Price apenas teria ficado em situação ainda pior. Por sinal, é o que ela parece descobrir quando é enviada pelo tio para visitar o miserável lar dos pais biológicos com o exato propósito de descobrir isso.

Na vida do lado de fora das páginas dos romances, descobrimos muita gente cheia de boa vontade disposta a apenas proibir ou, de alguma maneira, destruir relações com a forma similar à da relação de Fanny Price com os tios (“boicotem tal empresa que explora os chineses!”), como, afinal, se proíbe a muitas relações propriamente coercitivas, porém, sem que, faticamente, se possa oferecer algo no lugar para que as Srtas. Price reais não fiquem em situação pior sem esse tipo de relação da forma “se você não fizer x, então não te faço y”.

[1] HART, H. “Are There Any Natural Rights?”, The Philosophical Review, v. 64, n. 2, Apr. 1955, p. 175, n. 2.

Texto originalmente publicado no blog Estado da Arte, do Estadão.

Libertarianismo e pobreza: somos cruéis?

Tivemos hoje a primeira reunião do grupo que montei para o estudo da filosofia política de Robert Nozick. Como eu já esperava, dada a qualidade de meus alunos e colegas, e o caráter instigante do texto de Nozick, a discussão foi ótima. Eu, ao menos, tirei enorme proveito.
Claro, como também era esperado, um dos pontos que gerou o debate mais acalorado foi a situação dos pobres em uma sociedade libertária, ou seja, uma sociedade onde não haverá programas estatais de combate à pobreza ou uma rede social de amparo à população carente. Talvez sob a influência dos discursos libertários de cunho mais político do que filosófico que tenho lido ultimamente, mandei logo a resposta padrão, falando da suposta eficiência do livre mercado para fazer com que, a longo prazo, mesmo os mais pobres vivam confortavelmente, e dos supostos problemas econômicos gerados pelos gastos públicos. Foi aí que meu querido amigo Aguinaldo protestou contra meu rompante consequencialista, expressando sua preferência pelo argumento normativo pautado pelo princípio da não-agressão: não se pode roubar de um para dar a outro.
Desde então, fiquei pensando nisso e estava convicta de que tinha uma boa resposta para o Aguinaldo. Assim que sobrou um tempinho, tratei de escrever a ele, não por ter alguma ânsia de fazê-lo pensar como eu, mas porque, sempre que converso com Aguinaldo, eu organizo melhor minhas ideias e, de uma forma ou de outra, evoluo em relação ao meu ponto de partida. A coisa foi mais ou menos assim:

“Sobre o encontro de hoje, eu fiquei pensando sobre sua recusa completa do consequencialismo. Eu costumo observar que é preciso separar e compreender bem a independência das duas linhas argumentativas. Mas eu não estou tão convencida de que podemos ter argumentos minimamente convincentes se nos mantivermos estritamente no plano deontológico dos argumentos a priori. Note, porém, que eu estou falando da nossa capacidade de convencimento, não de uma carência lógica. Eu não acho que o argumento normativo precise de alguma espécie de complementação empírica. O que eu acho é que podemos chegar a uma situação em que a pessoa concede que nosso argumento normativo é perfeitamente válido, porém, opta por recusar sua premissa, e, talvez, essa recusa seja razoável mesmo.

Vou tentar explicar o que tenho em mente. O Charles [outro amigo e colega que participa do grupo] disse que todo mundo aceita o princípio da não-agressão, ou seja, que ninguém defende a agressão. Mas isso não é verdade. Pensemos no seguinte cenário.

Recusamo-nos a fazer uso dos argumentos da escola austríaca de economia [por misturarem axiomas com constatações empíricas], nos atemos aos filósofos morais propriamente e, assim, concedemos ao nosso adversário que o Estado poderia gastar sem gerar pobreza em larga escala a longo prazo, assim como concedemos que o livre mercado não tende necessariamente a gerar sociedades onde os mais pobres, em geral, vivem confortavelmente. Nós provamos, pura e simplesmente, que a situação de livre mercado é uma situação moralmente irretocável.

Muito bem, nós temos então que admitir a possibilidade da existência de extrema miséria em larga escala convivendo com a formação de uma elite econômica muito rica. Agora, nós não podemos provar a priori que as pessoas farão caridade nessa sociedade. Você concede então um cenário em que há miséria e as pessoas vão morrer sem amparo, afinal, mesmo que você se importe com isso, sem poder contar com outros para ajudar, você não resolverá o problema sozinho. Então, surge a seguinte consideração: será que não é razoável aceitar uma agressão aos mais ricos, desde que essa agressão não mude bruscamente sua situação econômica, se o objetivo dessa agressão é salvar a vida de alguém muito pobre? Não é razoável permitir que milionários sejam minimamente agredidos para que os pobres sejam maximamente beneficiados, ao deixarem de perder a própria vida? Suponha que eu tire R$200,00 ao mês dos muitos ricos para comprar remédios para os muitos pobres. Eu estou cometendo uma agressão mínima para provocar um benefício essencial.

Claro, você vai dizer, meu argumento é utilitarista. Mas eu acho que você nem precisa ser propriamente utilitarista para aceitá-lo. Veja que não estou dizendo que, no computo total, ao final do processo, haverá mais felicidade na sociedade do que havia antes. Eu acho perfeito o argumento do Nozick de que a infelicidade de um não é compensada pela felicidade do outro, porque os indivíduos vivem vidas separadas, não são recortes de um todo contínuo. A questão é que quer me parecer que qualquer pessoa razoável permitiria uma pequena agressão a um indivíduo para salvar a vida de outro ou poupar-lhe um grande dano. Por exemplo, eu dou um esbarrão em você para evitar que o outro quebre a perna. É razoável, não é? Eu acho que 90% das pessoas vão abandonar a premissa da não-agressão em sentido absoluto ao se darem conta disso. Imagine o seguinte [aqui, eu achei que ia mandar muito bem]: você não tem R$200,00 para comprar um remédio para uma criança que vai morrer se não tiver acesso a esse remédio; você pede esses R$200,00 ao Bill Gates e a outros; todos se recusam a ajudar; surge a oportunidade de você roubar esses R$200,00 da carteira do Bill Gates; você rouba, compra o remédio e salva a vida da criança; o Bill Gates te denuncia a autoridades (sejam públicas ou privadas); você é punido por roubo. Isso é justo?

…Caramba [aqui, eu me dei conta de que estava falando besteira], espera, acho que é justo, sim. Estou pensando enquanto escrevo. Desculpe por isso! Ocorre que, para que o Estado possa roubar uns trocados do Bill Gates para salvar a vida da criança, você também tem que poder fazer isso no estado de natureza. O Estado não pode ter a licença de fazer algo que você não teria licença para fazer no estado de natureza. Mas imagine uma sociedade onde uns poderiam decidir pelos outros como usar suas propriedades: “olha, você tem muito, portanto, vou tirar um pouquinho só de você e entregar para esse aqui que tem pouco demais”. É, acho que uma pessoa razoável não aceitaria isso, não. Eu poderia, por exemplo, tomar o dinheiro que você vai gastar em cerveja hoje à noite [isso é só uma conjectura muito provável, eu não sei se o Aguinaldo vai tomar cerveja hoje à noite] para comprar um casaco para alguém que vi passando frio. Eu justificaria esse ato dizendo que sua dor ao perder a cerveja só hoje não seria nada em comparação com a dor de quem passa uma noite inteira de frio, e pode até morrer desse frio. Mas ninguém razoável aceitaria que cabe a mim (ou a qualquer outro) decidir que a cerveja não é nada para você e o frio é muito para o outro, ou seja, que cabe a mim (ou a qualquer outro) decidir por você se, como e quando usar seus recursos para ajudar o outro. Então… é isso, podemos ficar sem a escola austríaca mesmo. Eu tive uma pequena febre consequencialista que já passou hehehe”

Foi isso! Agradeço ao Alan pela pergunta, a todos pelo debate e ao Aguinaldo por ter puxado minha orelha sobre minha resposta. Posto aqui o texto, porque pode ser uma reflexão útil a quem também se angustia com essas questões. No fim, libertários não somos cruéis. Somos apenas dolorosamente coerentes 😉