O direito a uma vida simples

Por ter uma personalidade bastante introvertida e contemplativa, eu ando muito interessada nesses movimentos por uma vida mais simples, lenta e quieta. O que me intriga é que, muitas vezes, quando alguém quer definir o que faz parte dessa vida simples, acaba defendendo causas que parecem levar ao oposto da simplicidade. Por exemplo, a preocupação com uma dieta saudável, baseada em alimentos frescos produzidos localmente, tem valor por si só, mas não é um meio para uma vida mais simples, ao menos, não é evidente para mim que o seja.

Eu mesma consumo vegetais frescos em quantidades enormes e cozinho minha própria comida. Pois posso atestar que minha vida não é mais simples por isso. Acho que minha vida é melhor por isso, mas, definitivamente, não é mais simples. Mais simples seria se eu comprasse uma lasanha pronta para descongelar no microondas. Quer dizer, o meu ponto é que, talvez, não queiramos descomplicar todos os aspectos das nossas vidas. Há complexidades que valem a pena. Nem tudo que é bom faz parte do pacote da vida simples ou é compatível com um estilo de vida menos oneroso. Mas há algo que não possa faltar no pacote da vida simples?

Eu diria que, antes de mais nada, você precisa refletir sobre as complexidades que você quer manter na sua vida. Eu, por exemplo, quero continuar cozinhando minha comida e comendo comida fresca e saudável. É uma prioridade para mim, então, não vou cortar essa tarefa para simplificar meu dia a dia, para ter menos correria. Você precisa saber quais são suas prioridades.

Porém, de um modo geral, alguns valores me parecem inimigos da vida simples, como os sábios antigos de diferentes culturas já reconheciam. Se sua prioridade é o consumo frequente ou o consumo de luxo, ou ainda vivenciar experiências sofisticadas, como viagens para longe ou refeições em restaurantes estrelados, você só conseguirá ter uma vida simples se já herdou dinheiro suficiente para tudo isso. Talvez, nem mesmo assim. A própria busca do consumo e das diferentes experiências já lhe colocará em movimento constante. Uma vida vivida em shoppings, restaurantes e hotéis é uma vida agitada.

Uma outra prioridade dificilmente seria compatível com uma vida simples. Se seu objetivo é simplificar sua vida, pior até do que o amor pelos bens materiais e pelas experiências gourmetizadas é o amor pela glória. Eu tenho para mim que, na maioria das vezes, a principal razão para uma pessoa querer se mudar para um apartamento maior ou enviar os filhos para a melhor universidade é simplesmente o que os outros vão pensar disso: como ela será vista como bem-sucedida por isso.

Muitas vezes, a busca pelo reconhecimento é muito mais direta: você quer ser o melhor na sua profissão para impressionar seus colegas. Isso é muito comum na academia, sobretudo, no Brasil, onde salários não se diferenciam muito com base na produtividade. Mesmo uma bolsa de produtividade não tem um valor muito alto. Nada que vá mudar radicalmente a vida de alguém. Certa vez, um colega me disse que ela deveria ser desejada simplesmente porque é o novo doutorado. “Agora, todo mundo tem doutorado, então, você se distingue dos demais pela bolsa”, disse ele. Imagino que, fora da academia, as pessoas busquem distinção mais indiretamente, pela ostentação de bens materiais e experiências, mas deve haver exemplos de busca mais direta também, sobretudo, na competição entre colegas de trabalho.

Agora, eu não acho que essa luta pela glória seja compatível com a simplicidade da vida e a tranquilidade do espírito. O que eu acho é que chega um ponto da vida em que deveríamos parar de competir um minuto para pensar se vale mesmo a pena continuar no jogo. O prêmio vale o sacrifício? Eu entendo que a natureza deve ter nos condicionado à busca dessas conquistas, porque qualquer documentário sobre o reino animal da TV a cabo nos mostra um comportamento similar, ao menos, em algum dos sexos de tantas e tantas espécies. É provável que só queiramos mostrar uns aos outros que seria um ótimo negócio para alguém se reproduzir conosco. Só que a natureza também nos fez capazes de reflexão. É típico da nossa cultura nos orgulharmos da nossa capacidade de darmos um passo atrás e avaliarmos o modo como estamos pensando, agindo, vivendo… Se não conseguimos mudar radicalmente, podemos, ao menos, refrear alguns comportamentos.

Nessa reflexão sobre os comportamentos que queremos refrear, surge uma questão sobre a moralidade de um modo de vida em que se abre mão de uma busca por conquistas. Não temos a obrigação de causar o máximo de impacto positivo no mundo, de fazer a humanidade avançar? Em outras palavras, temos o direito a uma vida simples? Eu confesso que não sei avaliar quais seriam as consequências se todos resolvessem parar de buscar a glória e trabalhassem apenas para suprimir as suas necessidades mais modestas. Geraríamos menos riqueza e os mais pobres passariam fome? Haveria desemprego em massa?

Eu não sou economista, mas parece-me que o capitalismo seja um regime baseado na voracidade. Com menos voracidade, a máquina pode girar mais lentamente e até parar. O que acontece então? Eu confesso que não sei. Só sei que, neste ponto, eu me lembro de uma passagem em que Henry Sidgwick nos diz que não seria errado um indivíduo cruzar uma ponte só porque essa ponte cairia se um exército passasse por ela. No caso, eu sei que meu desejo de ir mais devagar parece estar na contramão dos instintos mais profundos dos membros da nossa sociedade, de forma que eu não tenho por que temer que, por minha causa, um número tão grande vá querer atravessar a mesma ponte a ponto de fazê-la ruir.

A questão é se isso basta para legitimar meu comportamento do ponto de vista moral. Por exemplo, se eu souber que os outros continuarão sendo honestos, eu posso roubar? Claro que não. Por que, então, eu posso diminuir o ritmo da minha vida por saber que os outros continuarão acelerados? Talvez, a diferença seja que o roubo causa um mal direto para alguém, independentemente do que os outros estejam fazendo, ao passo que a diminuição do meu ritmo não vai deixar alguém mais pobre.

Será que não? E se eu acelerasse ainda mais e abrisse um negócio paralelo ao meu emprego atual, criando novos empregos? Eu tenho o direito de não fazer isso, tendo a oportunidade de fazê-lo, para viver uma vida mais simples? Ou eu tenho o dever moral de abrir mão da minha dedicação exclusiva à universidade onde trabalho, sacar minhas economias e começar esse novo negócio, que vai gerar empregos? Ou quem sabe eu deveria arrumar um segundo emprego, para guardar mais dinheiro, e, com isso, gerar mais oportunidade de crédito para os verdadeiros empreendedores abrirem os seus negócios?

Bom, acho que nenhum utilitarista defenderia que, em todas as nossas decisões, deveríamos realmente efetuar esse tipo de cálculo maluco para sabermos se estamos gerando mais bem do que geraríamos com qualquer escolha alternativa. Isso, porque a vida seria um inferno se todos tivéssemos que fazer isso. Deve bastar, então,que nos contentemos em verificar que, em nossa decisão por uma vida melhor, não estamos violando as regras de costume contra fraude, roubo ou agressão. Deve bastar, sobretudo, no contexto mencionado, em que é sabido que os outros têm a propensão oposta e, para o bem ou para o mal, não vamos mudá-la significativamente.

Publicado por

andreafaggion

Professora de filosofia.